Leandro Alves

A noção de transcendência no primeiro existente de Alfarabi

11 abril 2021

Resumo

Este ensaio tem como objetivo demonstrar a noção de transcendência no primeiro existe na filosofia de Alfarabi, que apesar de ser uma síntese da filosofia dos gregos pós-socráticos, é original e inovador para sua época. Será  defendido que a transcendência do Primeiro se demonstra em pelo menos três aspectos: por não estar contido no dualismo matéria-forma, por ser um intelecto em essência e que seu conhecimento se demonstra pela sua intelecção.

Introdução

Transcendência é um conceito que se refere ao aspecto da natureza e do poder de Deus que é totalmente independente do universo material, além de todas as leis físicas. Isso é contrastado com a imanência, onde se diz que um deus está totalmente presente no mundo físico e, portanto, acessível às criaturas de várias maneiras:

Em contextos cristãos, a transcendência geralmente se refere à distância ou diferença epistemológica e/ou metafísica de alguma realidade — especialmente de Deus — insuperável do empírico ou do cotidiano, de tal modo que o transcendente não pode ser conhecido, estudado ou encontrado nos modos que as realidades mundanas são, pois não pode ser categorizado ou assimilado a (e não está “no mesmo nível de”) nenhum deles. (COPAN, 2018).

Esta noção de transcendência não é comum à filosofia grega que, de diferentes maneiras, explora uma realidade baseada no motivo básico da matéria-forma. Entretanto, uma noção de transcendência pode ser vista na obra do filósofo Alfarabi.

Abū Naṣr Muḥammad ibn Muḥammad al Fārābī, ou simplesmente Alfarabi, foi um filósofo, músico, matemático, cientista e jurista turco (ou persa, há discussões) que viveu nos séculos IX e X d.C. A sua vasta obra filosófica contém tratados introdutórios da Filosofia, uma explicação da Metafísica de Aristóteles, três de concordância entre Platão e Aristóteles, outros sobre lógica, metafísica, física, psicologia, filosofia prática, astronomia, medicina, três tratados sobre música. Alfarabi foi um dos introdutores do neoplatonismo no mundo islâmico e ficou conhecido entre os primeiros sistematizadores da filosofia em língua árabe.

Seu livro com maior destaque é A Cidade Virtuosa, que tem sido considerada uma obra sobre teoria política, mas, mais do que isso, trata-se de um sistema filosófico desde os princípios metafísicos e epistemológicos (inclusive teológicos), a astronomia da formação dos corpos celestes e do mundo, até chegar no ser humano, que recebe uma análise fisiológica e psicológica e, por fim, a sua organização política e social, idealizando uma “cidade virtuosa”, que dá nome ao livro.

O Primeiro Existente

A filosofia de Alfarabi se mostra fortemente influenciada pelos gregos pós-socráticos. Ao discutir a cosmogonia, isto é, a origem de todas as coisas, Alfarabi apresenta o Primeiro Existente (por vezes chamado apenas de “o Primeiro”), de forma muito semelhante ao o Primeiro Motor de Aristóteles, mas hora parecendo Demiurgo de Platão e hora lembrando o Uno de Plotino, em uma grande síntese, que é característica da filosofia desta época.

Alfarabi destaca que o Primeiro Existente é a causa de todas as coisas, mas não é efeito de nada. O primeiro existente não é efeito de nenhuma das quatro causas de Aristóteles (eficiente, formal, material ou final). Nada precede a sua existência, e é eterno, pelo que sempre existiu e sempre existirá:

O Primeiro é aquilo a partir do qual advém toda a existência. Do primeiro existente, devido à sua existência própria, segue-se necessariamente a existência, a partir dele, dos restantes existentes, cuja existência não advém da vontade ou do livre-arbítrio do ser humano. (ALFARABI, 2018. p. 92)

Uma característica marcante para identificar o Primeiro como transcendente é o fato de que o Primeiro, para Alfarabi, está fora do dualismo matéria-forma, de maneira que não está contido na matéria nem seria descrito pela forma:

É o existente cuja existência não pode ter causa, através da qual, ou a partir da qual ou para a qual começou a existir. Não é matéria, nem tem subsistência na matéria nem num substrato, mas a sua existência está isenta de toda a matéria e de todo o substrato. Igualmente, não tem forma, porque a forma apenas pode existir na matéria. Se tivesse forma, a sua essência seria composta de matéria e de forma, e se assim fosse obteria a sua subsistência através dessas duas partes (matéria e forma), das quais seria composto, e a sua existência teria causa. (ALFARABI, 2018. p. 76)

Se para Platão o Demiurgo também estaria sujeito à dualidade matéria-forma, o Primeiro de Alfarabi transcende a esses conceitos e seria o princípio causador de toda matéria, e por consequência, da forma. Como ele mesmo explica, de maneira bem platônica, a relação das duas:

A matéria serve de substrato para a existência da forma, e a forma não pode subsistir ou existir sem a matéria. A matéria existe em função da forma, e se não houvesse forma, a matéria não existiria. A forma não serve para que exista a matéria, mas para que a substância corporal se torne substância em acto. (ALFARABI, 2018. p. 101)

Outro aspecto importante que demonstra a transcendência do Primeiro é o fato de Alfarabi o descrever como sendo um intelecto:

Uma vez que o Primeiro não existe na matéria, e não tem matéria de modo algum, é substancialmente intelecto em acto; pois o que impede a forma de ser intelecto e de inteligir em acto é a matéria em que uma coisa existe. Quando algo não precisa da matéria para existir, essa coisa é intelecto em acto na sua substância, e é esse o estado do Primeiro. (ALFARABI, 2018. p. 82)

Aqui Alfarabi enfrenta um dilema metafísico: como algo poderia existir sem ter matéria? Ele descreve que a característica da existência é o que faz do Primeiro, de fato o primeiro. Mas sua existência não presumiria que sua essência fosse matéria, mas sim intelecto. Não um intelecto em potência (como seria uma forma), mas um intelecto de ato. Isso torna o Primeiro de Alfarabi não uma máquina, como o Primeiro Motor de Aristóteles, mas sim uma mente.

Por fim, o terceiro fator da transcendência do Primeiro está no campo da epistemologia. O Primeiro, sendo auto suficiente, não precisaria ser alvo do conhecimento de outro ser, nem mesmo que exista outro ser para que o conheça e, assim, demonstrar a sua intelecção. O Primeiro é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento:

[…] o Primeiro não precisa de outra essência além da sua essência, conhecendo a qual obteria a virtude; e, para ser conhecido, não precisa de outra essência que o conheça, mas a sua substância é suficiente para conhecer e para ser conhecido. O conhecimento que tem da sua essência não é outra coisa senão a sua substância. O facto de conhecer, ser conhecido e ser conhecimento constitui uma só essência e uma só substância. (ALFARABI, 2018. p. 83)

Sendo assim, o Primeiro não precisaria ser matéria para que exista, e dispensa a necessidade da forma, pois a sua essência é sua própria intelecção.

No Cristianismo, a noção de transcendência de Deus é acompanhada também de sua imanência, pois apesar de estar ausente da matéria, sua criação, também interage e se revela por meio dela. Agostinho (2011) demonstra isso claramente nas suas Confissões, atribuindo a Deus tanto transcendência quanto imanência: “Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o ápice do meu ser!”.

Conclusão

Conclui-se que a noção de transcendência faz o Primeiro de Alfarabi se aproximar muito mais do Deus das religiões monoteístas que Demiurgo, Uno ou Primeiro Motor dos gregos, o que certamente é um ponto marcante de sua filosofia.

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: Eurípedes Braga de Queirós. [S. l.]: Nova Fronteira, 2011.

ALFARABI, Abu Nasr. A cidade virtuosa. Tradução: Catarina Belo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018.

COPAN, Paul [et all] (organizadores). Dicionário de cristianismo e ciência: obra de referência definitiva para a interseção entre fé cristã e ciência contemporânea. Tradução: Paulo Sartor Jr. 1. ed. - Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.


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